O Bowie.
Quando começo por contar a história da entrada do Bowie nos nossos dias, fico sempre meio perdida entre o riso e o choro. Não que eu já não seja essa mistura estranha de extremos encostados, mas a situação não poderia encaixar melhor naquilo que me define. Madrugada do primeiro dia de dois mil e onze, alguma ebriedade à mistura (resta dizer que os tempos eram outros e ainda se afagavam — sim, afagavam — tristezas e alegrias dessa forma) e um felino majestoso — na altura garantiríamos, nós, as especialistas na espécie, que era uma fêmea — irrompe festa adentro, impondo-se como centro dos costumes. Na verdade, a contagem decrescente, as passas descontadas, o pé direito em equilíbrio, o brinde de olhos nos olhos já haviam decorrido, mas eu soube, tive a certeza de que ali, sim, começava outro tempo, outra sorte. Tropeços à parte, o Bowie — por uns dias, a Florence — chegou ao quarenta e nove da Antero de Quental e nunca mais dali saiu. Nunca mais dali sairá. Com ele, vieram encontros, descobertas, risos, mimos, lições, missões, tudo. Veio uma família que estava, antes, descolada. Até porque, e não me contrariem (já não tenho idade, nem saco, nem capacidade para ter de explicar), um gato (ou outro animal qualquer) é um gato que é muito mais do que um gato, que é muito mais do que um animal, que é muito mais do que poderão, ainda, alguns pensar. Podia contar inúmeros episódios que estão gravados em cada canto desta casa — e de outras por onde passou (obrigada, @franksy53, @maria_costa_santos e @cosmic.barbarella) —, mas fico-me por aquela semana em que o Bowie viveu aos meus pés, depois do final da minha relação de mais de cinco anos, para me assegurar de que eu podia ter achado que tinha deixado de saber existir, mas ele não deixaria de saber existir comigo. Ou pela mania deliciosa de me despertar com os dentinhos cravados nos sítios mais inoportunos de todos os que o meu corpo tinha para oferecer. Ou pelo lugar à mesa que ocupava como se de um humano se tratasse — e não se trataria de um gato mais humano do que alguns humanos? (já não tenho idade, nem saco, nem capacidade para ter de explicar que sim, obviamente que sim) —, ou pelo colo que escolhia consoante a hora e o ânimo, ou pelo ponto em que o sol lhe adormecia a excitação de estar vivo e de estar vivo connosco. Na sexta-feira, depois de uma rápida sucessão de fracassos do corpo que habitava — sabe-se lá porquê, não há veterinário que me consiga explicar porque é que um gato saudável adoece assim, sem aviso, sem explicação, sem o raio que o parta —, decidimos que teríamos de o deixar partir. Quis o acaso que coincidisse com o aniversário do meu pai, colo que sempre preferiu, apesar de o meu pai ser daqueles pais que, inicialmente, dizia «gatos dentro de casa, nem pensar, não quero», para depois passar a arregalar os olhos a quem ousasse roubar o posto que era, por excelência, «do gato». Sabemos que a coincidência pode parecer estranha, cruel, evitável, mas para nós, é um lembrete ininterrupto de que a vida é assim, um equilíbrio que não nos interessa muito quando está lá em baixo, mas que, dizem (sei lá eu quem) que é preciso por lá passar para apreciar o que está no cimo. E, de certa forma, aconchega-nos também a ideia de que a mesma data fará com que os dois eventos se aconcheguem um no outro, para que nunca fiquem longe da memória. Ou de nós.


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