Chamava-se Ana Beatriz
Chamava-se Ana Beatriz, mas eu chamava-lhe Ana Vidatriz. Primeiro foi vida, depois casa, mais tarde memória. Juntou-nos uma canção, entrançou-nos uma cidade. Havia de nos separar a divergência neurológica que, sabíamos lá nós, contaria tantas das nossas histórias. Tantas histórias, que seria injusto pedir às palavras que as desenrolassem. Seria não; será. Farei questão de contar a Ana sempre que conseguir, mesmo que não faça sentido para quem nos viu crescer assim — mais paralelas do que juntas, por vezes cruzadas, sempre presentes. Passámos por muito, passámos por tanto — um dia, contarei mais; agora, pede-me o corpo e a cabeça que tenha calma, que o coração nem sempre aguenta tantas avalanches seguidas e dois mil e vinte e quatro mais sugere desastre natural. Um dos hábitos que tínhamos era o de trocar excertos de livros que líamos ou de letras de álbuns que (nos) tocavam. Sabendo que o Stig Dagerman era um dos preferidos da Ana, a luta quotidiana, a resistência diária daquilo que somos ou queremos ser surgia como um dos seus inevitáveis mantras. Mas a verdade é que ambas pousávamos o peito num Norman Cousins mais impossível de consolar (ainda para fazer referência a Dagerman, não vá ela estar a ler isto — tenho a certeza de que estará), mais próximo de nós: Death is not the greatest loss in life./The greatest loss is what dies inside us while we live. Isto só para dizer que sempre vimos a morte com alguma naturalidade, a luta como óbvio requisito para ser, mas o descanso como fundamental — fosse passageiro ou definitivo. E é isso que quero que ela saiba (e que sempre lhe fiz chegar, de uma maneira ou de outra): que percebo, que entendo, que a ouço. Que estou aqui, mais paralela do que junta, por vezes cruzada, sempre presente.

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