terça-feira, 29 de novembro de 2005

do adeus e do fim.


e adormeci com o sabor a fim, a trilho apagado, a tristeza salgada.
eram as memórias a deitarem-se na almofada, a tentativa insistente emafastá-las do sono atrasado e elas a penetrarem um pensamento semi-sereno.
eras tu e o teu outro tu, porque tu não podes ser só um. eras tu a escorregar-me por entre os dedos e o futuro a rir-se de mim porque é vazio de ti, porque tem de ser vazio de ti. eram as desculpas que são culpas, os ódios que são amores, a indiferença que não é senão uma tentativa de restabelecer a paz, de restabelecer-me, porque isto não sou eu, isto não posso ser eu.
é o mundo a lançar dados nos meus dias e eu a não querer jogar mais. é estar farta de dar provas, de ultrapassar os nãos, de correr para não alcançar sim nenhum.


não sabia que a palavra adeus podia dar murros no estômago.

*fotograma de wristcutters: a love story.

quarta-feira, 23 de novembro de 2005

dúvidas perenes.



should I stay or should I go now?

if I go there will be trouble
an' if I stay it will be double.*

*the clash.
fotografia de chooupinette.

terça-feira, 22 de novembro de 2005

quarenta e nove.


nas manhãs esperadas, saía de casa - de olhos entreabertos para o mundo -, calcava a calçada suja, feita de rotina colada ao hábito e seguia para o número quarenta e nove.
dia seguido de dia, tocava na campainha branca, à espera que os olhos verdes-verdes subissem as escadas da casa-abrigo.
um dia, num amanhecer como os outros, o olhar acordou mais aberto. assustado. como se não pudesse fechar-se para o futuro instante. a calçada parecia-lhe menos regular e os passos aceleravam o prenúncio matinal.
ao soar estridente do toque branco, os olhos verdes-verdes não acordaram. do interior da cave, não surgia nada, senão o cheiro do medo, um odor moribundo e algumas certezas que não queria certas.
disseram-lhe: "os olhos verdes cederam aos inúmeros avisos. o mundo não cabia nela. ela não cabia no mundo, sabes? adormeceram ao som da morte."
ela sabia a inevitabilidade deste discurso. há muito que receava a chegada deste dia. que temia os dias em que os olhos verdes ficavam em casa, enrolados em mistério, dentro das paredes de um quarto.
fecharam-lhe a porta do quarenta e nove e a dúvida.
respirou, então, a ausência dos olhos verdes-verdes. respirou bem fundo a memória das manhãs madrugadoras, preguiçosas. respirou os fins-de-tarde [tardios], envoltos em exaustão. bocejantes.
fechou a porta e lembrou-se de como esta ausência era tão necessária como previsível.
fechou a porta e seguiu. de mãos dadas com a vida.

*fotografia d'aqui.

quarta-feira, 16 de novembro de 2005

amanhã, liberdade.



empurro-me, todos os dias, para amanhã.
amanhã, amanhã, amanhã.
amanhã vou abrir as portadas da janela, colar a luz no quarto.
amanhã vou esconder-me de vocês, vou ficar enrolada no novelo que criei, vou arrumar coração e sangue e pele num canto do corpo e respirar um cenário novo.

'amanhã vou ser feliz, não vou, mãe?'
respirar um cenário limpo. livre de infinitas histórias finitas.
l-i-b-e-r-t-a-r--m-e.
soltar o orgulho amarrado e explodir a esperança.
negar o desamor e a nudez do coração. o meu coração. o teu desamor. negar-te.


fotografia de ryan mcginley.

segunda-feira, 7 de novembro de 2005

um, dois, três: respirar.



respirar uma noite construída em inícios do século XX, de som alto a perfurar o peito; a música a entrar e a ficar e a pedir para que permaneça como âncora em tempos agrestes.

era a vida a espelhar-se nos refrões cantados e eu a sussurrá-la para mim - baixinho, porque ninguém pode saber como sou prisão, como o nada bate a porta, que me lembro morte e sorte, como encarnas revolução, como és tudo o que eu vejo, como o dois (não) veio depois.
e é o regresso à vida impedida, à vida sem ti e sem ela, sem ele e o outro. sem mim.

de repente o assunto é assunto e tu mergulhas bem fundo, fugindo do amor. cá estarei no fim dessa espera até ao tempo do que era e não volta a ser.*

*pluto, convite.
fotografia de maria do carmo.

sexta-feira, 4 de novembro de 2005

de nenhum fruto queiras só metade.*


não te percas na epiderme de ninguém. procura, e encontrarás o que está para além de um quarto de luzes mortas. não te esqueças de ti nesse quarto. esse quarto é efémero, é uma divisão de felicidade momentânea. não tardes o encontro com as palavras que suplantam o silêncio. não sejas meio fruto e não queiras ter meias emoções. não sejas porto de passagem. não vivas de beijos com prazo, alegria limitada e choro contido. espera pelo todo, pelo completo, pelo inteiro.


*miguel torga.
fotograma de closer.